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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

POR QUE NÃO VOTO EM BOLSONARO?

Ouço muitos católicos dizerem que irão votar no candidato do PSL, Bolsonaro, porque ele representaria os valores que o catolicismo defende. Será? 
Vejamos.
Em 2016 o então pré-candidato à presidência foi batizado pelo pastor Everaldo, importante membro da Igreja evangélica Assembleia de Deus. 

Atualmente um de seus cabos eleitorais mais fiéis é Silas Malafaia, um pastor pentecostal líder do ministério Vitória em Cristo, ligado também à Assembleia de Deus.
Outro apoiador e cabo eleitoral é o deputado federal Marco Feliciano, pastor da Catedral do Avivamento, uma igreja neopentecostal também ligada à Assembleia de Deus.
Portanto, se fossemos buscar um candidato tomando como critério a defesa de valores católicos, não seria Bolsonaro, pois este não é católico, mas evangélico.

No entanto, o critério para a escolha de um candidato para a presidência de nosso país não pode ser o critério religioso, se ele é ou não batizado na igreja que pessoalmente seguimos, pois o Estado brasileiro é laico, ou seja, o governo brasileiro não deve ter uma opção religiosa. O Estado (governo) deve garantir que todos, independentemente da religião que seguimos, tenhamos a liberdade de crença e de culto, sem medo de perseguições ou represálias.

O texto reproduzido abaixo foi extraído do site do IHU (Instituto Humanitas Unisinos), mantido pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pertencente aos jesuítas (Companhia de Jesus) e localizada no Rio Grande do Sul. O texto, intitulado "O voto católico em Bolsonaro e a instrumentalização da fé", faz uma importante e fundamentada reflexão sobre as contradições deste voto, pois os valores que este candidato defende não são os valores do catolicismo e nem mesmo do cristianismo.
Boa leitura!



A ninguém é permitido invocar exclusivamente em favor da própria opinião a autoridade da Igreja. Mas proporem sempre esclarecer-se mutuamente, num diálogo sincero, salvaguardando a caridade recíproca e atentos, antes de tudo, ao bem comum (GS 43).

Com a proximidade do pleito eleitoral de 2018 e, com ele, o início da corrida presidencial, os católicos do Brasil se veem às voltas na hora de escolherem seus representantes. Velhos modelos elitistas, corrupção legitimada, apatia e nanismo político, propostas utópicas, protofascismo. Enfim, o cenário é desolador e, longe de encher os olhos, traz ainda outros desafios cruciais relativos ao complexo discernimento de candidatos ou candidatas que estejam afinados com as premissas da fé católica, especialmente naqueles pontos mais delicados, para a opinião pública, acerca de sua doutrina moral, a exemplo da despenalização do aborto e do avanço de direitos sociais de minorias sexuais e de gênero.

Embora tenha começado por aí, não trago nenhuma fórmula pronta ou cartilha de como fazer um “voto católico”, uma vez que quando adentramos o terreno da consciência e suas escolhas éticas e morais estamos sempre diante de um chamado particular à liberdade e à responsabilidade. Em quem votar? Qual candidato tem propostas mais alinhadas à fé católica e suas premissas? O que me choca, como pessoa humana, como católico e educador implicado na defesa de direitos humanos, é que para muitos dos meus irmãos e irmãs na fé, a resposta a essas perguntas tem o nome de Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL). Vejam que me detenho não na escolha de seu nome para a presidência simplesmente, o que já seria naturalmente contraditório, mas que isto seja feito sob argumentos religiosos.

Afora toda a sua fracassada trajetória parlamentar, marcada pela ausência de projetos para a população que tenham nascido da escuta do povo e de suas demandas, o que era de se esperar de alguém que há 27 anos recebe dinheiro público para isso; e sem falar na ausência de um projeto de governo concreto e detalhado para o Brasil, enquanto candidato, o que fica claro pelo amontoado de frases feitas e expressões vagas que compõem seu projeto de governo1, chamam a atenção do mundo inteiro uma carreira política e trajetória de campanha calcadas no discurso de ódio, na fala vexatória, nas piadas criminosas, nos inúmeros gestos de apologia à violência e na insolente esquizofrenia em relação a páginas hediondas e nefastas da história do Brasil, as quais ainda nem bem superamos, a exemplo da ditadura militar.

Em cada nova declaração, entrevista, debate, ainda quando não fala – a exemplo da cena viral em que ensina uma criança a fazer menção a uma arma com as mãos – sua bestialidade choca e aterroriza os pensamentos dos que vislumbram o que, infelizmente, pode nos atingir no dia da apuração. E sim, tanta violência encontra eco e voto numa parcela considerável de eleitores brasileiros, fenômeno complexo e multifatorial que basicamente se alimenta das insatisfações econômicas de determinados grupos sociais histórica e injustamente privilegiadas, da sensação generalizada de insegurança e impunidade, da decepção com a cena política tradicional, dentre tantos outros.

Papa Francismo institui o Dia Mundial dos Pobres: "Não amemos com palavras, mas com obras".
Que haja quem vote em Bolsonaro me parece tristemente compreensível, afinal, estamos no Brasil, país massiva e estruturalmente racistamachista e elitista. Seus apoiadores encontraram, enfim, quem “tenha coragem de dizer a verdade” na qual eles creem e, por isso, por essa “sinceridade” torna o candidato do PSL “o mito” de seus eleitores, em geral, adultos jovens e bem escolarizados. Agora, que haja cristãos católicos fazendo sua escolha pelo referido presidenciável e, pior, supostamente baseando-se em imperativos categóricos de consciência apoiados na fé católica ou no dorso de sua doutrina para justificar sua decisão é, sem sombra de dúvidas, uma desonestidade intelectual sintomática. Tal fato aponta para onde têm rumado as perspectivas de muitos católicos cujas consciências, enamoradas de certo farisaísmo rigorista e sectário, deixam-se contaminar com filosofias ultrarradicais que beiram o fascismo. Não é de se espantar que sejam esses mesmos grupos, em alguns casos, a rejeitar as transformações eclesiais instauradas pelo Concílio Vaticano II, a criticar a cruzada de Francisco contra o clericalismo e outras formas de conservadorismo estéril, a pôr em dúvida as posições e a autoridade pastoral e magisterial das comissões episcopais das igrejas particulares, a exemplo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB.

É intensa a pressão que tais grupos exercem no meio religioso a fim de coagirem as consciência de seus pares, esquecendo-se porém que a Igreja reconhece que, diante de suas escolhas, inclusive políticas “(...) todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem impedido, dentro dos devidos limites, de proceder segundo a mesma, em particular e em público, só ou associado com outros” (DH 2).

Enquanto tal pressão, muitas vezes dotada de tom apocalíptico e condenatório, busca na autoridade da Igreja, ou de alguns de seus setores, justificação ante ao acovardamento que lhes impõe não assumirem, sem subterfúgios, os valores que lhes movem a consciência e o voto, acabam por instrumentalizar a Igreja, a qual “não quer, de maneira nenhuma, imiscuir-se no governo da cidade terrena. E não reclama para si nenhuma outra autoridade se não a de, com a ajuda de Deus, estar a serviço dos homens pela caridade e pelo serviço fiel” (DH 12). Embora isso não lhe tire o múnus de oferecer luz sobre fatos de quaisquer ordens, o que, de certo, é coisa muito diversa.

Escolher um candidato que recentemente defendeu, em rede nacional, a omissão do Poder Executivo ante a exploração gerada pela disparidade de salários entre homens mulheres nas mesmas funções no mercado de trabalho2 e se dizer em fidelidade ao Magistério da Igreja, é ignorar que esta está sensível e solidária aos excluídos nas dinâmicas sociais onde “os povos oprimidos pela fome interpelam os povos mais ricos. As mulheres, onde ainda não a alcançaram, a paridade de direito e de fato com os homens. Os operários e os camponeses querem não apenas ganhar o necessário para viver, mas desenvolver, graças ao trabalho, as próprias qualidades; mais ainda, querem participar na organização da vida social e política” (GS 9).

Ainda nessa direção, o apoio irrestrito à reforma trabalhista recentemente aprovada pelo Legislativo brasileiro3, a qual trouxe grandes prejuízos e retrocessos para os trabalhadores e trabalhadoras de todo país, bem como suas colocações sobre o tema apontam a identificação de Bolsonaro com os detentores do poder nas relações de trabalho, sua indiferença ante a precarização das condições de vida dessas pessoas “criadas a imagem e semelhança de Deus” (Gn 1: 4) Tal postura anti-evangélica e nem de longe católica, é um exemplo cabal do que constata o Papa Emérito Bento XVI, na sua Carta Encíclica Caritas in Veritate: “infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes no comportamento dos sujeitos sociais e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitem os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se, às vezes, grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local” (CV 22).

Nessa mesma prática de instrumentalização dos ensinamentos da Igreja em favor de suas convicções pessoais, os católicos que apoiam tal candidatura em nome de sua fé, ignoram de forma irresponsável que um governo de inspiração teocrática, como proposto pelo candidato social liberal e inscrito no slogan de sua coalisão “Brasil acima de tudo! Deus acima de todos!”, traz consequências perversas próprias do atrelamento entre o poder temporal e o poder religioso, como testemunha a história do mundo. Além disso, tal pressuposto rompe com a longa trajetória da doutrina católica pela defesa de um estado laico, da liberdade religiosa, do diálogo inter-religioso e da cooperação solidária e caritativa entre os que creem e os que não creem. Assim, solapam o ensinamento de que “a Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem contribuir para a reta construção do mundo em que vivem em comum (...), deplora, por isso, a discriminação que certos governantes introduzem entre crentes e não-crentes, com o desconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa” (GS 21).

Como se não bastassem as distorções até aqui apresentadas, incorrem em erro grave ao indicarem como opção mais adequada de voto, em suposta exigência de valores cristãos, um candidato que não apenas declara-se publicamente favorável à liberação do porte de arma por civis e à revogação do Estatuto do Desarmamento4 aprovado em 2015, assunto vencido no país em referendo realizado em 2005, o qual aprovou com 63% o desarmamento, amplamente apoiado pela Igreja Católica, como também faz apologia ao uso da truculência e da violência por parte da força policial do Estado como forma de combate aos índices de criminalidade. Tais posições divergem frontalmente do ensinamento da Igreja ao sustentar que “a produção e o comércio de armas afetam o bem comum das nações e da comunidade internacional. Por isso, as autoridades públicas têm o direito e o dever de regulamentá-los. A busca de interesses privados ou coletivos a curto prazo não pode legitimar empreendimentos que fomentem a violência e os conflitos entre as nações e que comprometam a ordem jurídica internacional.” (CIC 2316).

Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, “as injustiças, as desigualdades excessivas e ordem econômica ou social, a inveja, a desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as nações ameaçam sem cessar a paz e causam as guerras. Tudo o que for feito para vencer essas desordens contribui para edificar a paz e evitar a guerra” (CIC 2317). Certamente, a conduta, os discursos e o modo de encarar a violência urbana expressa abertamente pelo candidato do PSL à presidência5, num sem-número de ocasiões e declarações, distam léguas da perspectiva complexa e sociologicamente abalizada que subsidia a visão da Igreja sobre tais realidades.

Infelizmente, ao encobrirem suas convicções políticas nefastas de suposta religiosidade e respeito à sã doutrina, esses irmãos esquecem-se de que “a atuação cristã dos leigos no social e no político não deve ser considerada ministério, mas serviço cristão ao mundo na perspectiva do Reino” (Doc. n° 105 CNBB) que é sempre um lugar de justiça, caridade e amor. Desse modo, ignoram que “a participação consciente e decisiva dos cristãos em movimentos sociaisentidades de classe (sindicatos), partidos políticos, conselhos de políticas públicas e outros, sempre à luz da Doutrina Social da Igreja, constitui-se num inestimável serviço à humanidade e é parte integrante da missão de todo o povo de Deus” (Doc. n° 105 CNBB).

No bojo dos discursos proto-facistas de Bolsonaro está também a ridicularização das prerrogativas éticas e legais dos direitos humanos6, desprezando a trajetória de luta popular para sua efetivação, especialmente em países tão marcados por desigualdades sociais e fragilidade democrática como o Brasil, bem como a identificação equivocada e fraudulenta dessa conquista social com o que expressam jargões populares como “direitos de bandido” ou o trocadilho “direitos humanos para humanos direitos”. Exemplo disso são, além da minimização criminosa das inúmeras violações de direitos humanos das quais o Estado Brasileiro foi algoz ou cúmplice, depois do Golpe de 647, a apologia à tortura8, ao estupro9, a defesa da pena de morte10 e da prisão perpétua11, da castração química12, de políticas de exclusão para refugiados13 e a consideração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)14, ganho imensurável para a democracia brasileira, um entrave ao cumprimento da lei e da ordem.

A revelia dessas reflexões, eleitores de Bolsonaro que supostamente se fiam em sua fé católica, estrategicamente, ou por ignorância doutrinária, preferem considerar nulas constatações magisteriais como as do texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, as quais refletem que “em algumas assembleias ou assembleias legislativas aprovam leis injustas contra os direitos humanos e a vontade popular, precisamente por não estarem perto de seus representados, nem saberem dialogar e escutar seus cidadãos. Em alguns países tem aumentado a repressão, a violação a direitos humanos, inclusive o direito à liberdade religiosa, à liberdade de expressão e à liberdade de ensino, assim como o desprezo à objeção de consciência” (DA 79 e 80).

Nesse mesmo documento, a Igreja, ao analisar o contexto social e eclesial dos países da América Latina e do Caribe, dados seus controversos processos de formação histórica afirma: “como discípulos e missionários a serviço da vida, acompanhamos os povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias, na defesa do território, na educação bilíngue e na defesa de seus direitos” (DA 531). Tal empenho missionário da Igreja certamente encontraria como entrave a ignorância e a crueldade das posições políticas de um possível governo de Jair Bolsonaro, para quem as questões de demarcação de terras de povos originários, dentre outras demandas, não passa de uma besteira inventada e utilizada como massa de manobra pela “esquerda” para desperdiçar dinheiro com a Fundação Nacional do Índio, a Funai15.

Movido por um ímpeto missionário pleno de compromisso social e respeito à dignidade da pessoa, o ensinamento Magistério afirma que “a Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo em suas diferentes expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade das pessoas humanas ‘criada a imagem e semelhança de Deus’” (DA 533). Indo além, sustenta que se vê preocupada com o fato de que “poucos afro-americanos cheguem à educação superior, sem a qual se torna mais difícil seu acesso as esferas de decisão na sociedade. (...) a Igreja se faz solidária aos afro-americanos nas reivindicações pelas defesas de seus territórios, na afirmação de seus direitos, de sua cidadania, nos projetos próprios de desenvolvimento e consciência de negritude” (DA 533). Diante dessas asserções, parece ridículo que alguém, em nome da doutrina católica, apoie um candidato que em suas declarações minimiza a presença estrutural do racismo no Brasil e de suas consequências e que ainda seja capaz de, em tom jocoso, ridicularizar pessoas quilombolas durante eventos públicos16.

Diante de tais fatos, não fica complicado entender que, como parte de seu múnus na terra, a “Igreja defende os autênticos valores culturais de todos os povos, especialmente os oprimidos, indefesos e marginalizados, diante da força avassaladora das estruturas de pecado na sociedade moderna (SD 243)”, estruturas essas facilmente nomeadas como racismosexismo, misoginia, homofobiatransfobia, intolerância religiosa, trabalho escravo contemporâneocorrupção, dentre tantos outros.

A essa altura de nossas reflexões, pergunto-lhes: qual a coerência ética e moral de justificar o voto em Jair Bolsonaro, em razão de sua suposta defesa de valores evangélicos como “a vida”, se tal defesa restringe-se apenas a defesa da vida do nascituro ante a questão da descriminalização do aborto (para a qual não há nenhuma menção ou posicionamento em seu projeto de governo), mas desconsidera uma gama de outras formas de atentado à vida, como as inúmeras apresentadas neste texto? A defesa da vida é uma postura integral. Ou defendemos todas as vidas de todas as pessoas, em todos os seus estágios e independentemente de suas condições socioeconômicas, ou não defendemos a vida, mas barganhamos seu direito, o direito de viver e viver com abundância, como nos prometeu Jesus (Cf. Jo 10: 10), outorgando-lhe apenas aos que passam no crivo de nossa moral, por tantas vezes corporativista e farisaica, sobretudo em relação a alguns temas, em especial os da moral sexual, como fazem alguns sites que se arvoram subsídio para o tal “voto católico”, ao estabelecerem critérios unilaterais e fechados para essa complexa escolha pessoal que carece de iluminação e não de dogmatismo obscurantista.

Há ainda os que recorrem às polarizações políticas há muito questionáveis, a exemplo dos binômios “esquerda” x “direita”, “progressistas” x “conservadores” para, num gesto maniqueísta, identificarem de um lado toda a fonte do mal terreno, ou uma estrutura propriamente satânica; e do outro, valores de inspiração cristã, moralmente aceitáveis em cujo o ideário estaria a presença da verdade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, respectivamente. Ledo engano! Não é de hoje que o Magistério, em especial a Doutrina Social, que não é um pacote ideológico fechado, afasta tentativas de partidarização da Igreja ou de eleição de uma orientação política específica e exclusiva que seja representante de seu pensamento. O que a Igreja espera de nós, cristãos leigos e leigas, em especial, é o acurado discernimento dos sinais dos tempos para nossas escolhas pessoais na vida política, assumindo a globalidade e a integridade da mensagem salvífica, sem exclusivismos que escondem, na verdade, nossas identificações pessoais e ideológicas, sob véu de uma fidelidade de conveniência.

Mas, em quem votar? É a pergunta que dispara a angústia de tantos católicos e católicas que, infelizmente, não aprenderam o caminho da reflexão madura, o exame de consciência e a capacidade de discernimento em suas comunidades pastorais, mas esperam uma indicação, um “cabresto santo” que as guie para a “escolha certa”. Independentemente de qual rosto apareça na urna quando o botão verde for pressionado pelos católicos de todo Brasil, estou convicto de que é falaciosa e fraudulenta uma escolha por Jair Bolsonaro que se queira justificada pela fé ou doutrina católicas.

Para muitos, é no princípio da teologia moral do “mal menor”, transposto para a esfera política, o qual posicionaria um mal menor na categoria do bem ante a escolha obrigatória entre males diferentes, que esses irmãos e irmãs católicos vão buscar descanso para suas consciências ante esta contraditória escolha política. Ora, nessas circunstâncias não há como se esquecer das palavras da filósofa judia Hannah Arendt acerca do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann: “sua consciência ficou efetivamente tranquila quanto ele viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia. Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta (Arendt, 1999, p. 143)”.

Assim, considerar a escolha do candidato do PSL como válida sob esse princípio, em obediência à fé católica, ou seja, considerar essa escolha um “mal menor” é atestar a nossa incapacidade, como povo católico, de discernimento e indignação, sensibilidades profundamente cristãs, ante a banalidade do mal, da qual nos alertou Hannah Aredent, que hoje se nos apresenta “repleta de sentenças prontas, baseadas em uma lógica autoexplicativa, desencadeada em raciocínios dedutivos, mas que, todavia, andavam [andam] em descompasso com o percurso da própria realidade” (Assy, 2001, p. 139, alteração minha).

Apesar de todo esse contexto, faço aqui minha profissão de fé na Divina Providência que guia misteriosamente os passos do Povo de Deus através da História, na qual já testemunhamos tantos desertos, covas de leões, gólgotas, mas em todas essas situações venceu o Senhor da Vida e da Igreja. Crendo nele, rezo e creio com Hannah Arendt: “(...) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na terra” (Arendt, 1987, p. 7).

Abreviaturas
DH Dignitatis humanae. Declaração sobre liberdade religiosa. Documentos do Concílio Vaticano II.
GS Gaudium et spes. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. Documentos do Concílio Vaticano II.
CV Caritas in veritate. Carta Encíclica do Sumo Pontífice Bento XVI sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade.
CIC Catecismo da Igreja Católica.
Documento nº 105 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre Cristãos Leigas e Leigos na Igreja e na Sociedade.
DA Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe.
SD Documento de Santo Domingo. Texto conclusivo da IV Conferência do Episcopado Latino-Americano.

Notas
[3] Disponível em: Saiba como votou cada deputado no texto-base da reforma trabalhista. Acesso em: 10 de set. 2018.
[4] Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1326319.pdf>. Acesso em: 10 de set. 2018.
[6] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1TkZPqHJhlE>. Acesso em: 10 set. 2018.
[7] Exemplo do reconhecimento das atrocidades e crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil é a condenação do Estado Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em sentença proferida em 15 de março de 2018. Acesso em: 10 set. 2018.
[8] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G5TiUmiF6ls>. Acesso em: 10 set. 2018. 
[11] Disponível em: Bolsonaro fala sobre pena de Morte e prisão perpétua. Acesso em: 10 set. 2018.
[12] Disponível em: Bolsonaro fala sobre castração química. Acesso em: 10 set. 2018.
[13] Enquanto o candidato tem a pecha de considerar tais pessoas em situação extrema de vulnerabilidade emocional, social e política como “escória do mundo”. Acesso em 10 de set. 2018. A Igreja Católica, no pleno exercício do mandato missionário de Jesus e em fidelidade a sua Doutrina Social propõe e confirma inciativas como a Pastoral dos Refugiados, além de promover subsídios de formação pastoral para a acolhida desses irmãos. Acesso em 10 set. 2018.
[14] Disponível em <Jair Bolsonaro fala sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente> Acesso em: 10 set. 2018.

Referências
Arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ASSY, Bethânia. Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt. In: MORAES, Eduardo J.; BIGNOTTO, Newton (Orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001a. p. 136-165

Danillo Silva, mestre e doutorando em Letras/Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Sergipe, professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (IFAL) e de Linguística e Linguística Aplicada do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Católico leigo, tem se dedicado ao serviço pastoral de formação e ensino na Arquidiocese de Aracaju, Sergipe, desde 2007, atuando sobretudo em temas relacionados à doutrina e à espiritualidade católicas em diálogo com os desafios sociais e políticos do tempo presente.



2 comentários:

  1. Muito bom, estarei te citando numa apresentação na Universidade de Palermo, Argentina, numa Congresso Acadêmico em agosto 2019 sobre a utilização do livro no momento da eleição de Bolsonaro e as formas de resistência ao obscurantismo que alguns anteviam e denunciavam. Grato e ótimo seu trabalho.

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