"O
fascismo tem como ponto nodal e condição de sua existência a ausência da
linguagem no tempo, ou seja, do discurso; sua "linguagem” não passa de uma
espécie de tradução imediata de atávico ódio ao Outro”, afirma o filósofo.
"O fascismo só existe na ausência da crítica”, diz Ricardo Timm à IHU On-Line, ao comentar os discursos extremados em relação ao atual cenário político brasileiro. Na avaliação de Timm, o fascismo é "uma expressão extrema de medo do Outro, expressão essa manobrada por ideologias mais sutis”.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail, o filósofo comenta algumas das
características do fascismo, entre elas, a "ojeriza completa ao questionamento
e pavor ao pensamento, e, por extensão, à cultura em geral”. Segundo ele, "o
fascista típico não argumenta, ele rosna, emite onomatopeias, cacareja
lugares-comuns, mas não processa dados cognitivos”. Sobre o "fascismo
brasileiro”, Timm frisa que ele "é tão rudimentar como a sociedade na qual ele
surge, o que não significa, absolutamente, que seja menos primário ou violento
que em outras tradições”.
Timm
também comenta o estado de direito à luz do judiciário brasileiro, e é
categórico: "O Judiciário brasileiro se constitui em uma perfeita casta de
privilégios, em constante troca de favores com os demais poderes e os Donos do
Poder. Sua função ideológica específica é dar aparência de legitimidade às
decisões da Casa Grande, e aqui, novamente e de modo muito incisivo, as
exceções confirmam a regra”.
Ricardo Timm é
graduado em Instrumentos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
e em Estudos Sociais e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul – PUCRS. Também cursou mestrado em Filosofia pela PUCRS e doutorado
em Filosofia pela Universität Freiburg (Albert-Ludwigs). É autor, entre outras
obras, de Em torno à diferença – Aventuras da alteridade na complexidade da
cultura contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). É também um dos
organizadores de Alteridade e Ética – Obra comemorativa dos 100 anos do
nascimento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008).
Confira
a entrevista.
IHU On-Line - Como
conceituaria o fascismo hoje? Quais são as raízes dessa intolerância que
descamba em violência? Em que medida o totalitarismo como filho bastardo da
modernidade nos ajuda a compreender o recrudescimento do fascismo no mundo e no
Brasil, especificamente?
Ricardo Timm de
Souza- Para compreender o que se tem chamado de "fascismo” hoje, há que, primeiramente,
dilatar a tradição histórico-hermenêutica desse termo, acompanhando a própria
revolução comunicacional, que por sua vez segue pari passu a globalização
tardo-capitalista e as novas lógicas geobiopolíticas. Isso, porém, não
significa que alguns traços clássicos não perdurem nas expressões
contemporâneas desse fenômeno social. Destacaria em primeiro lugar a lógica do
"feixe”: não há fascista subjetivo, nem ao menos no sentido individual mais
elementar do termo; cada fascista não é senão o reflexo de muitos outros, e o
todo compõe um "feixe de varas” — "fascio” — rígido e no qual cada uma é
indiscernível da outra. Outra característica muito clara e evidente também hoje
é a ojeriza completa ao questionamento e pavor ao pensamento, e, por extensão,
à cultura em geral. Goebbels disse: "quando ouço falar em cultura, levo a mão
ao coldre do meu revólver”.
O
fascismo só existe na ausência da crítica; alimenta-se de uma espécie de
proto-positivismo definitivo, no qual a realidade está dada de uma vez para
sempre, e qualquer possibilidade de questionamento do dado por estabelecido é
interditada. Por decorrência, ocorre a interdição da linguagem. O fascista
típico não argumenta, ele rosna, emite onomatopeias, cacareja lugares-comuns,
mas não processa dados cognitivos. Tudo está para sempre "dito”, no sentido
levinasiano do termo. E a essas características — e também como decorrência, de
certo modo, delas — expressa-se sua face mais visível: a violência em todas as
suas formas, justificada "por si mesma”, no sentido de esmagar o Outro ou
anulá-lo completamente.
Nunca
é demais lembrar que o fascismo contemporâneo, como o clássico, é,
essencialmente, uma expressão extrema de medo do Outro, expressão essa
manobrada por ideologias mais sutis. O fascismo, dito em termos simples e
apenas formalmente pareados para os fins específicos da presente questão, é o
resultado da cópula entre uma espécie bem determinada de psicopatologia e uma
naturalizada sociopatologia.
IHU On-Line - Por
que esse comportamento político tem ganhado espaço e "credibilidade” através da
representação política? Em que aspectos o estado de exceção e a biopolítica se
manifestam e se imbricam no fascismo atualmente?
Ricardo Timm de
Souza- Por sua própria natureza de apologia de irracionalidade, os fascistas atraem,
como dissemos acima, na condição de massa de manobra, expressões diversas de
racionalidades por nós chamadas no texto "O nervo exposto” de "vulgares” — que
entregam-se à promessa das certezas definitivas (nenhum fascista tem dúvidas,
só certezas) — e "ardilosas”, que veem aí uma oportunidade preciosa de difusão
de seus interesses que, por motivos diversos, não podem ser abertamente
confessados. (Essa é uma das razões pelas quais a direita tem sempre uma e
apenas uma bandeira apresentada como de interesse geral: a "corrupção”.) Todo
fascismo é, na realidade, a ocupação de um espaço deixado, por algum motivo ou
motivos conjunturais, "em aberto” no espaço político. Isso pode soar paradoxal,
porém se esclarece na medida em que se há de compreender "política” — em última
análise, "vida (em) comum na polis” — como espaço de convivência de diferenças
e de diálogos e ações por vezes muito árduas: é isso que entendemos como
processo de construção democrática, algo que apenas se pode dar ao longo do
tempo de construção, pela convergência e divergência de diversos discursos que
carregam, em si, a expressão explícita ou implícita de seus interesses.
Ora,
o fascismo tem como ponto nodal e condição de sua existência a ausência da
linguagem no tempo, ou seja, do discurso; sua "linguagem” não passa de uma
espécie de tradução imediata de atávico ódio ao Outro. E, por isso, em última
análise, não faz sentido falarmos de "discurso de ódio”. Discurso pressupõe
linguagem articulada no tempo que encontra outras linguagens, e linguagem
articulada no tempo pressupõe pensamento e capacidade de lidar com o real, o
que, como vimos, é o pavor de todo fascismo. É nesse ponto crucial — pretensão
de detenção do tempo e da realidade, ou seja, nessa utopia de não se ter mais
utopias — que livros como O fim da história e o último homem, de Fukuyama, a
legitimação do estado de exceção por autores como C. Schmitt e G. Jakobs e a
violência biopolítica universal hoje praticamente desimpedida, denunciada por
Walter Benjamin, Giorgio Agamben e Jacques Derrida, se encontram e mostram
articuladamente sua verdadeira face.
"O fascismo tem como ponto nodal e condição de sua
existência a ausência da linguagem no tempo, ou seja, do discurso"
IHU On-Line - Que
peculiaridades poderia apontar acerca do fascismo à brasileira?
Ricardo Timm de
Souza- O fascismo à brasileira apresenta algumas peculiaridades em relação a outras
tradições. A mais notável e decisiva diz respeito ao fato de que a nação
brasileira se constitui em uma "sociedade rudimentar” (feliz expressão de
Maurício Dias). Isso se dá devido a inúmeros fatores, dos quais o mais decisivo
é, sem dúvida, a indigência educacional e cultural congênita cuidadosamente
cultivada no país em formação — lembremos que, enquanto no século XVI já
tínhamos as primeiras Universidades latino-americanas, até 1808 era
terminantemente proibida a fundação de Universidades no Brasil, e isso só mudou
devido à fuga da família real para cá. Daí advêm vícios extremamente arraigados
no conjunto da população, que vão do hábito de confundir constantemente
bacharéis com doutores até considerar a educação, em todos os seus aspectos,
como algo absolutamente não prioritário.
A
reprodução das classes iletradas, ou funcionalisticamente letradas (pessoas com
curso superior que não conseguem ter uma visão mais abrangente da sociedade) —
o que, do ponto de vista de compreensão das lógicas sociais, dá na mesma — tem
sido cuidadosamente cultivada e se constitui em um dos instrumentos
fundamentais de contenção das classes subalternas e cooptação de camadas médias
aos interesses dos "donos do poder”. Isso se mostra de forma muito aguda pela
exclusão de temáticas humanísticas dos currículos escolares e incorporação
constante de formações tecnicistas-funcionalistas, no sentido da procura muito
bem calculada do desenraizamento das pessoas (através, principalmente, da
exclusão de temas como a filosofia, a história, as letras em geral). Isso se
acentua com a devastação cultural e educacional promovida pelo golpe
civil-militar de 1964 e a adoção dos modelos MEC-USAID a partir de 1969 nos
currículos escolares nacionais. Podemos inclusive dizer que boa parte do que se
vê frequentemente em termos de ideário de direita no Brasil não somente é ainda
fruto dessa devastação planejada, como, também, sua retroalimentação insidiosa.
Tudo
isso conforma um tipo de indivíduo altamente desejável para o
positivismo-funcionalismo; sua característica mais notável é a completa
incapacidade de compreender problemas historicamente estruturais, considerando
a totalidade da realidade social como dimensões conjunturais desconectadas umas
das outras. E, por óbvio, um tal indivíduo esvaziado de capacidade crítica
aparece como privilegiado do ponto de vista da cooptação pelo modelo fascista
nativo.
Entre
nós, a mais cabal incultura não é acidental em grupos fascistas, mas essencial.
Não tivemos e nem temos, na consecução de algum ideário fascista ou
protofascista estilo integralismo, nem a mais remota sombra de um Carl Schmitt,
um Heidegger, um Céline, um Knut Hamsun, um Gabriele d’Annunzio, um Pirandello,
um Ungaretti, um Giovanni Gentile. Em outros termos, o fascismo à brasileira é
tão rudimentar como a sociedade na qual ele surge, o que não significa,
absolutamente, que seja menos primário ou violento que em outras tradições.
IHU On-Line - No
episódio recente da homenagem do deputado Jair Bolsonaro ao torturador Carlos
Alberto Brilhante Ustra em plena votação do impeachment no Congresso, como
analisa o recrudescimento de posturas autoritárias e fascistas entre os
políticos e a população em geral?
Ricardo Timm de
Souza- Minha interpretação é que Bolsonaro pretendeu testar, com sua homenagem
extravagante, sua popularidade e receptividade, já que, sabemos, pretende
candidatar-se à Presidência da República.
IHU On-Line -
Acredita que está havendo uma redução do espaço político/público em nosso país
tendo em vista essa conjuntura? Por quê? Tendo em vista o cenário político
brasileiro atual, qual é a sua análise do que irá ocorrer junto aos movimentos
sociais em termos de garantia de seus direitos fundamentais e liberdade de
expressão daqui para frente? Quais são as regressões políticas fundamentais que
destacaria?
Ricardo Timm de
Souza- Não vejo exatamente uma redução do espaço político no Brasil no momento
presente; vejo, antes, um processo gradativo — porém incisivo — de redução
desse espaço desde pelo menos a década de 90, cujas consequências são só agora
perceptíveis em toda sua palpabilidade, no interesse do tardo-capitalismo
internacional (já que esse fenômeno está longe de ser apenas brasileiro). A não
percepção, ou o dado objetivo de não levar suficientemente a sério tal fato
(atitude conhecida como "descolamento dos movimentos sociais e da sociedade
organizada” por parte do governo) foi uma das grandes falhas dos governos Lula
e, especialmente, do primeiro governo Dilma. A decadência de determinados
modelos mais prevalentes de democracia liberal, que chegou ao seu ápice, por
exemplo, na era Monti na Itália, que "coroa” e completa a longa e tenebrosa era
Berlusconi, é um fato constatável e constatado.
O
gerencialismo a substituir a presença da população nos espaços sociais reais (a
transformação maciça de pessoas em consumidores reais e virtuais da produção
tardo-capitalista e a crescente prevalência do capital financeiro-virtual nas
economias, lados diversos de uma única moeda) é fato disseminado em
praticamente todo o mundo ocidental e não apenas nele. Porém, se o atual estado
de coisas da realidade política brasileira tem uma grande possibilidade em
aberto, essa é a de reinscrição do protagonismo da sociedade nos universos
decisórios, a partir da demarcação clara dos ambientes a serem simbolicamente
reconquistados desde o esforço reflexivo-práxico do agir — na utilização
realmente inteligente das redes virtuais, por exemplo. Em outras palavras,
trata-se de reinventar a(s) política(s) em outros termos, a partir dos
escombros de modelos ab initio contaminados de interesses inconfessados das
propostas clássicas ou tidas como tal.
"É extremamente difícil falar em estado de Direito
no Brasil"
IHU On-Line - O que
resta do Estado de direito frente a tantos dispositivos de exceção colocados em
prática por nosso Judiciário nos últimos meses? Dentro da crise política atual,
qual é o papel do Judiciário na legitimação de um estado de exceção e de
constante insegurança jurídica para as pessoas?
Ricardo Timm de
Souza- É extremamente difícil falar em estado de Direito no Brasil, não obstante o
esforço de tantas gerações honestas — incluindo a nossa — que procuram
construí-lo constantemente. De fato, a formalidade, o formalismo que é
cofundador da proto-nação brasileira (tratamos desse tema mais detidamente em
nosso livro O Brasil filosófico) renasce constantemente de suas cinzas, e essa
fênix infeliz disfarça nesse seu movimento autocriador o que de fato acontece
na realidade. Estado de Direito, sim, a quem a ele tem acesso; "estado de
exceção que é a regra”, a Benjamin e Agamben, ao imenso resto, num mimetismo
exato da binariedade "Casa Grande e Senzala”. Dispensável citar aqui as
inúmeras estatísticas e elementos que provam constantemente o abuso desimpedido
em desfavor da legalidade e da legitimidade: gigantesca população carcerária
(imensa parte da qual ilegalmente no cárcere), "punitivismo populista”, lógica
inquisitorial de funcionamento de imensa parte do judiciário e de seus órgãos
auxiliares etc.
A
constatação desse factum é seguida de uma outra constatação mais prosaica que,
porém, por fundamental, não pode fugir do alcance de nosso olhar analítico: o
Judiciário brasileiro (e as valiosas exceções confirmam a deslavada regra) se
constitui em uma perfeita casta de privilégios, em constante troca de favores
com os demais poderes e os Donos do Poder. Sua função ideológica específica é
dar aparência de legitimidade às decisões da Casa Grande, e aqui, novamente e
de modo muito incisivo, as exceções confirmam a regra.
FONTE: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=88881
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