Em dois dias de Governo interino do
presidente Michel Temer já se sabe que haverá um ajuste fiscal e que
pode haver a Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo que
permite gastar livremente parte do orçamento disponível, sem seguir as
obrigações constitucionais de destinação de gastos. Educação é uma das
áreas obrigatórias. Os dois anúncios acenderam o alerta entre
especialistas em educação, reunidos durante o “Seminário Internacional
Educação para a cidadania global”, realizado pelo EL PAÍS, a Fundação
Santillana e a Unesco, na última quinta-feira (12), em São Paulo. Eles
temem o distanciamento do país de concretizar as metas do Plano Nacional
de Educação (PNE). Aprovado em 2014, o PNE foi criado justamente para
corrigir falhas na área, melhorando a universalização da educação, e
criando um plano de carreira para professores da rede pública, uma das
categorias mais mal pagas do país.
“Educação
não é gasto. É investimento”, defendeu Cesar Callegari, membro do
Conselho Nacional de Educação (CNE). De acordo com o especialista, o já
aguardado ajuste fiscal, anunciado pela equipe do presidente interino
Michel Temer, e a volta da Desvinculação de Receitas da União (DRU),
podem distanciar o país ainda mais de concretizar as metas do Plano
Nacional de Educação (PNE). “Sobretudo em momentos de dificuldade, como
agora, a educação não pode ficar a mercê, ela é um instrumento
anticíclico”, complementou.
O novo
ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho (deputado federal pelo
DEM-PE), assumiu a pasta oficialmente nesta sexta-feira, em um clima
bastante tenso. Foi recebido com vaias pelos funcionários de Cultura,
pasta que foi fundida a contragosto com o MEC. Bezerra Filho foi
vice-governador de Pernambuco de Jarbas Vasconcelos por sete anos, e
governador por um ano, quando Vasconcelos saiu para concorrer ao Senado.
É conhecido no meio político por ter arquitetado a PEC da reeleição. Na
área da educação, contudo, é desconhecido da grande maioria.
Durante
o evento, os educadores evitaram opinar sobre expectativas quanto a sua
gestão. Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação,
entretanto, destacou que, em sua breve passagem como governador, Bezerra
Filho defendeu a educação integral em seu estado. “Não sabemos muita
coisa sobre o novo ministro, mas há esperanças. Em Pernambuco, foi um
grande entusiasta da educação em tempo integral nas escolas. Mas não
conheço o posicionamento dele quanto a outros temas importantes, como a
base curricular nacional e a formação de professores”, afirma.
Os
desafios a enfrentar são muitos. Há uma orientação clara do novo
governo interino em promover um severo corte de gastos para elevar
receitas e cobrir o rombo das contas públicas. O novo ministro da
educação ainda não se pronunciou a respeito de como o ajuste vai afetar a
educação, mas interlocutores da equipe econômica de Michel Temer já
sinalizaram que aprovação do projeto de lei que ressuscitará a DRU,
extinta em dezembro de 2015, será fundamental.
Callegari
acredita que a DRU é “um atentado contra as bases de financiamento da
educação brasileira. Um retrocesso gravíssimo”. Priscilla Cruz concorda.
“O ajuste é necessário, mas se o Brasil entende que historicamente o
nosso maior erro foi o descaso com a educação, então não pode invadir o
nosso orçamento”, afirma. “Se a gente quer reduzir o tempo desta crise e
evitar recessões futuras, precisamos de verdade colocar a educação como
prioridade”, complementa.
Para o presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime),
Alessio Costa Lima, caso a DRU volte, ainda que temporariamente para
aliviar as contas da União, estados e municípios, as metas já
estabelecidas para o Plano Nacional de Educação serão comprometidas. “O
PNE determina que a União destine gradativamente um percentual maior do
PIB para a educação. Hoje, o país aplica em torno de 5% a 6% do PIB. A
meta é que em 2017 chegue a 7% e, no final, em 2024, a 10%. Entendo que
na crise a destinação de novos recursos é difícil, mas retirar recursos
já existentes, que não são suficientes? A DRU nos preocupa porque seria
um preço muito alto que o país pagaria”, conta. Lima destaca, ainda, que
39% dos investimentos em educação partem dos municípios, 41% dos
estados e apenas 20% da União.
Ainda
que os recursos investidos não sejam suficientes para atender todas as
demandas do setor, foi possível avançar muito nos últimos anos, segundo
opinião de Callegari. Dentro do CNE discute-se, em audiência pública, a
criação de uma base curricular nacional comum e o redesenho das
diretrizes das licenciaturas, que são a base para a formação de
professores no Brasil. “O próximo passo será discutir a ultra
concentração da educação superior na mão de poucos e grandes
conglomerados empresariais. Impor limites à concentração de grupos
econômicos na educação, o que tem só precarizado o sistema”, conta
Callegari.
“Investir não é colocar
mais dinheiro a esmo. É preciso investir naquilo que é estruturante em
matéria de qualidade da educação, como a carreira do professor e a
infraestrutura das escolas. O PNE defende um novo modelo de educação,
que se pretende mais criativo, mais participativo, mais experimental.
Esses investimentos precisam acontecer e me preocupa essa redução de
verba, mesmo que temporariamente”, explica.
Uma nova educação para atender novas demandas
Não
é preciso falar em cifras da educação, contudo, para chegar à conclusão
de que o Brasil ainda tem muito a percorrer no âmbito da qualidade de
ensino. Basta voltar à sala de aula: estudantes de diversos estados,
como São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul estão ocupando
suas escolas como forma de reivindicar diversas pautas, que vão desde a
melhoria do ensino até o atendimento das necessidades mais básicas,
como merenda.
De acordo com Maria
Redher, coordenadora de projetos da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, o movimento estudantil das ruas deixa um recado bastante claro
para os gestores de políticas educativas. “A escola, da forma como está
constituída, não atende mais aos interesses dos jovens”. Alice Ribeiro,
secretária-executiva do movimento pela Base Nacional Comum, lembra que
em menos de três anos a pasta da educação trocou de ministro seis vezes.
“Espero que o novo ministro dê continuidade aos trabalhos em curso,
como o desenvolvimento da base curricular nacional, assim como fizeram
os seus antecessores”, complementa.
A
falta de continuidade das políticas públicas voltadas para a educação
também foi apontada como um dos principais entraves do setor por Gabriel
Chalita, secretário de Educação da cidade de São Paulo. “Há dois
grandes problemas. O primeiro é a falta de continuidade. Já tivemos
excelentes projetos de educação que foram desprezados por questões
partidárias em governos sucessórios. O segundo é que muitos gestores
acreditam em milagres. Educação é um processo e demanda visão de longo
prazo, não dá para criar soluções imediatas. Também precisamos envolver
mais a sociedade na construção do modelo educacional que queremos. Não
pode ser baixado por decreto”, destaca. Para ele, educação é a política
pública mais importante, pois “resolve” todos os demais problemas, como
empregabilidade e renda.
A ascensão
social vivenciada nos últimos anos, que viabilizou o acesso à educação e
a novas tecnologias por toda uma geração de jovens, puxou a mudança no
perfil das demandas estudantis no país. “Aprender a ler e fazer contas
não é mais suficiente para viver no mundo atual. Precisamos atualizar as
nossas escolas para que sejam capazes de formar cidadãos globais”,
destaca Cecilia Barbieri, especialista sênior da Unesco na América
Latina. Maria Rebeca Otero Gomes, coordenadora de educação da Unesco no
Brasil, concorda. “Precisamos priorizar uma educação que transcende o
aprendizado em sala, que seja para toda a vida. Temos um problema sério
de qualidade no Brasil, mas a tendência é que o PNE, que foi um grande
avanço para o setor, possa resolver grande parte dos nossos entraves nos
próximos anos”, diz.
Qualidade acima de tudo
A
escola em tempo integral, por exemplo, é uma realidade nas economias
mais desenvolvidas que especialistas em educação vêm tentando implantar
no Brasil. “É muito difícil acreditar que vamos conseguir, por mágica,
alcançar os mesmos resultados em apenas quatro horas de aula, contra as
sete horas do ensino integral nos países desenvolvidos”, afirma o
diretor-presidente do Instituto Natura, David Saad. Outro ponto
importante que precisa ser implantado em breve, na visão do
especialista, é a base curricular comum, tema em audiência pública no
ministério. “Um bom currículo é primordial para elevar a qualidade
daquilo que se aprende em sala”, complementa.
Visto
que o gasto com educação no Brasil é relativamente baixo, em
percentuais do PIB, o país precisa primar pela qualidade do investimento
que faz no setor. “Além da escola em tempo integral, há diversas outras
questões que precisamos trabalhar, como a formação inicial e a educação
continuada dos professores. Nenhum investimento que é feito de maneira
inadequada vai gerar bons resultados”, alerta.
A
iminência de um ajuste fiscal, ainda que necessário para retomar o
crescimento da economia, tem preocupado o setor pela possibilidade de
afetar ainda mais essa relação entre custo e qualidade. “O Governo
precisa escolher, com uma lupa, onde fazer os cortes. No passado fizemos
escolhas que se provaram equivocadas, como investimentos massivos
apenas em infraestrutura. Mas de que adianta infraestrutura num país com
taxa líquida de matrícula no ensino médio de apenas 55%? Não há futuro
para o Brasil sem educação. Se o ajuste fiscal tiver de mexer nessa
área, que faça cortes apenas em gastos que não são essenciais”, destaca
Saad. Um dos exemplos de gasto que poderia ser cortado em momento de
ajuste fiscal é de cunho administrativo, automatizando sistemas.
Fonte: El País
https://undime.org.br/noticia/17-05-2016-16-44-especialistas-preveem-grave-retrocesso-na-educacao-com-possiveis-cortes-de-temer
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